Bullying - Um grito...Um nó na garganta (2)

24/07/2015 12:47

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Beatriz – De repente eu tenho 12 anos novamente…

Beatriz disse que tem sensações, não tantas lembranças. Foram anos e anos de agressões; verbais, morais e físicas. Ela tem 23 anos, sempre estudou em escola pública. Quando ouviu o termo “bullying” pela primeira vez, ela pensou: “Hey, isso aconteceu comigo… Mas não tinha esse nome”. O nome disso de 1998 a 2002, o período ápice em que sofreu com isso, era conhecido como “mexer com o nerd”… Nada mais.

“Num ambiente regido pela meritocracia, eu era a Melhor Aluna. Mas isso nunca foi motivo de orgulho pra mim. Sempre tentei me esconder. Quantas vezes antes de dormir, sonhava que poderia acordar ‘mais burra’ na manhã seguinte e então poderia ser uma pessoa ‘normal’”

Na hora do intervalo, ela lanchava sozinha. Para quem foi criança nos anos 90 sabe o quão terrível isso significava. Beatriz passou a adolescência toda ouvindo e aceitando que era chata e feia, fazendo parte das infames listas de votações das crianças mais feias e esquisitas. Ela tinha amigos, mas era uma pessoa tímida, com dificuldades em fazer amizades. Se relacionar com outras pessoas era uma espécie de “suplício”. Perdeu as contas de quantas vezes ela chorou sozinha por conta das piadas que faziam referentes às suas aparências.

“Aos 12 anos me lembro de uma situação extremamente humilhante: no intervalo, umas meninas que me maltratavam, mas insistiam que eram minhas amigas, acharam que seria legal jogar uma lata de refrigerante na minha cabeça, só porque seria engraçado, em público. Eu voltei pra casa chorando.”

Implicavam com seus cabelos crespos, cabelos estes que hoje passam por uma reconstrução capilar, para que ela possa se aceitar como é, devido aos inúmeros procedimentos químicos que fazia desde os 11 anos. Além dos cabelos, implicavam com o corpo. Ela queria ser modelo, queria ser magra e fazer uma rinoplastia. O tempo foi passando e as agressões aumentaram. Buscou uma saída para tentar amenizar o problema. A autoflagelação com agulhas trouxe a ela momentos de calma que ela não tinha no dia-a-dia.

“Em outra ocasião, como toda boa nerd, era péssima em educação física, levei um tombo e caí de cara no chão. Ninguém me ajudou a levantar, nem o professor, e a dor física era imensa, mas a dor emocional muito mais. Aqueles segundos em que estive no chão pareceram eternos, ainda mais porque olhei pra trás e parecia uma cena de cinema, todos rindo e apontando pra mim. Até hoje eu ouço aqueles risos quando passo por situações parecidas (sim, também sofri bullying quando entrei na faculdade, mas graças a muita terapia, tive forças para enfrentar o agressor).”

Esta foi uma das inúmeras situações humilhantes as quais passou. Disse que não imaginava que escrever sobre isso fosse tão doloroso, tão difícil. Beatriz fez terapia durante mais de quatro anos para tratar as marcas que o bullying deixou em sua vida: Síndrome do Pânico, depressão e transtornos de ansiedade. Um dia, na faculdade, os colegas ministraram um seminário sobre o bullying. Foi surpreendida por uma crise de choro, e correu para o banheiro se esconder. Hoje, aos 23 anos, ela se questiona: De quem é a culpa? Dos outros, os agressores? Ou dela, a vítima, que não soube se defender? Esses pensamentos a perseguem todos os dias. Por que ela não conseguiu escapar ilesa do bullying? Isso a deixa confusa; não só a ela, mas a todos que passam por isso e lutam incansavelmente para tentar entender o porquê deste estigma social que não se consegue esquecer. Hoje, com 23 anos, ainda existem situações que a fazem sentir ter 12 anos novamente:

“Os anos passam, mas mesmo assim as pessoas riem de mim. Eu sei que não deve ser importante, essas pessoas não são importantes, mas de alguma forma isso me incomoda. Eu finjo que não me importo, mas eu me importo…

As risadas… Calafrios descem pela minha espinha, de uma forma que eu não mais sentia. Tentei por tanto tempo esquecer que eu já senti isso um dia, de tantos outros risos, que eu finjo não escutar. De repente, senti como se eu tivesse 12 anos de novo, e tudo que eu queria é desvanecer-me.

E a risada? Não importa o que meus amigos dizem, esta risada vai se juntar às outras risadas que tenho guardadas, ecoando em minha mente durante os meus dias mais sombrios …”

Juliana e as minúsculas pedras azuis

Juliana tem 27 anos. Ela diz que quando conta a sua história às pessoas mais próximas, elas se surpreendem, olham com cara de espanto e dizem: Você é uma pessoa forte. Ela ainda tem suas dúvidas a respeito disso. Ela começou contando sua história como uma testemunha de uma cena de bullying ao qual presenciou quando criança. O nome da menina era Helen e ela tinha oito anos. Helen era uma menina franzina, loira dos olhos claros, de cabelos crespos e volumosos. Andava carregando um pano, chupava constantemente os dedos e tinha asma. Um dia, Helen passou mal na fila da merenda e vomitou sem querer no braço de uma menina. Foi o estopim para que ela sofresse ainda mais com as agressões, até então verbais. Um dia, no banheiro da escola, as meninas da escola encurralaram Helen.

Eu me lembro, como se fosse hoje, Helen sentada na beiradinha da pia extensa onde ficavam as torneiras, as meninas em volta, de várias idades, 9, 10 a 13 anos. Elas iam, uma a uma provocando Helen, chamando ela de bebezinho, cabelo de bruxa, doente mental. Uma das meninas deu-lhe um tapa no rosto, e depois uma a uma começou a agredi-la com murros, chutes. Eu assisti a cena, não sabia o que fazer, tinham meninas grandes e valentonas, se eu a defendesse, eu também apanharia. As meninas foram embora, então sobrou somente eu e Helen. Ela estava com a cara banhada em sangue, e usava seu pano para se limpar. Ela chorava, mas eu nunca vi lágrimas tão silenciosas. Quando ela olhou em meus olhos, é como se ela me dissesse: por que você não fez nada? Helen mudou de escola, meses depois, e eu paguei por meus erros. Chegou a minha vez de sofrer agressões…”

Juliana foi adotada. Apenas ficou sabendo disso quando tinha seus sete anos, e até os oito, recebeu todo o amor que uma criança poderia receber. A partir de então, os pais adotivos resolveram se divorciar. Começou o inferno. Juliana começou a transparecer os problemas de casa na própria personalidade. Desde quando viu a mãe adotiva tentando se matar na sua frente, sua vida mudou.

Nunca me esqueço, minha mãe se debatendo no chão, meu irmão adotivo mais velho tentando socorrê-la. Levaram-na no hospital, ele voltou, eu estava rezando em minha cama. Ele apenas disse: “A culpa é sua!”

Ele achava que eu era culpada, eu era adotada, não era membro da família,

“Dizia constantemente que eu era o diabo, que tudo o que estava acontecendo era porque eu simplesmente existia.”

Andava sempre triste, cabisbaixa. Enquanto as crianças brincavam alegres, ela ficava isolada, em um canto qualquer. Juliana tinha lindos cabelos negros, e ela tinha pegado piolho pela terceira vez. A mãe, constantemente dopada de remédios tarja preta, tomou uma atitude drástica: cortou os longos cabelos de Juliana e depois colocou inseticida em seu couro cabeludo, deixando-a no sol.

“Minha cabeça ardia, queimava. Eu gritava pra minha mãe me tirar dali, mas ela estava dopada demais para entender. Talvez aquilo tenha sido uma coisa normal pra ela, eu não consigo entender até hoje o porquê daquela atitude. Quando eu me lembro disso, sinto o meu couro cabeludo arder. Já sonhei muitas vezes que o meu cabelo caia, e que várias pessoas em volta espirravam inseticida na minha cabeça. Eu era criança, tinha apenas 9 anos.”

Juliana então foi chamada pelos colegas de “Joãozinho”. Na fila da merenda, perguntavam se ela era homem ou mulher. Ela tentava passar um batom, mas a mãe adotiva a repreendia. Os brincos pequenos na orelha não representavam nada,

“Juliana? O nome dela é Juliana? Jurava que era um menino!” – diziam as crianças.

Ela costumava se refugiar no alto de uma árvore que tinha perto das quadras esportivas. Evitava fazer Educação Física, pois não aguentava as gozações de que ela deveria estar jogando no time dos homens ao invés das mulheres. Eram humilhações na escola, humilhações em casa. Seu irmão adotivo a trancava no quarto e fazia festas em casa na ausência da mãe. A ameaçava colocando uma faca em seu pescoço. Passava fome, passava sede, enquanto mulheres nuas e alcoolizadas andavam pela casa. E ela trancada no quarto. A mãe adotiva sempre defendia o filho legítimo. A garota era sempre o demônio na história toda, apontada como a principal culpada dos problemas financeiros, divórcio e vícios da família. Passou muito tempo de sua infância extremamente sozinha. Um dia, ela encontrou veneno de rato no armário. Sentou aos pés do armário de madeira maciça que tinha na sala de estar. Pegou três pedrinhas azuis de veneno, do tamanho de um comprimido. Engoliu. E ficou lá, esperando morrer. Não morreu. Ela tinha de ir para a escola, mas sabia que se ela fosse para a escola e passasse mal, as pessoas tentariam salvá-la, a menos que ela se escondesse, mas as crianças faziam questão de encontrá-la e humilhá-la.  Ficou em casa neste dia. Mas nada, absolutamente nada aconteceu. Depois disso e outros casos graves de ameaças físicas e psicológicas, ela resolveu que não merecia mais conviver com aquilo. Aos dez anos de idade decidiu que queria morar com sua família biológica. Foi lá que ela voltou a ter paz no ambiente familiar, mas na escola, pouca coisa mudou, mesmo tendo mudado de cidade.

Quando foi para a sexta série, numa pequena cidade do interior, achou que lá, na nova escola, ela teria a paz que precisava. Achou que por ser uma cidade pequena, as pessoas não seriam tão mesquinhas. Ledo engano,

As pessoas me davam toda a sorte de apelidos: Kika, escrota, mulher do Marrocos, beiçuda, coisa, nariguda, maria arrependida, demônio, cu de ferro, assombração de biblioteca, entre outros. Costumava jogar xadrez com as únicas duas amigas que tinha no fundamental. Um dia, os meninos que estavam do outro lado do pátio começaram a jogar pedras em nossa direção e proferindo xingos. Paramos de jogar xadrez.”

Na época das paixonites de adolescente, Juliana gostava de um garoto que cantava no coral ao qual participava. Ele tinha os olhos gentis, disse-me ela, aliás, até hoje, segundo ela, ele possui os mesmos olhos gentis… Mas nunca tentou nada, naquela época em que as meninas e meninos já davam seus primeiros beijos, pois ela era a garota estranha, e ninguém teria olhos pra ela. Juliana sofria bullying por ter a voz de ganso, buzina de caminhão. Quem cantava em coral e era do lado das contraltos não tinha o mesmo valor das garotas que eram sopranos. As garotas sopranos poderiam solar óperas. Contraltos não. Hoje ela sabe que isso é besteira, uma inverdade, mas

“quando temos 13-14 anos, qualquer coisa que a maioria concordasse e era bradada a quatro cantos da escola como verdade, nosso coração desajeitadamente aceitava.”

Além disso, era a garota que andava de preto, a garota que era tão magra que nenhum vestido de gala que ela desejava usar na noite da ópera servia pra ela, sobrou um vestido amarelo, que não servia em ninguém. As meninas mais populares, com vestidos pomposos apontavam os dedos: lá vai a Juliana magrela despeitada, o quindim ambulante que ninguém quer. O quindim estragado, ninguém vai querer comer. Até hoje, ela não veste nada amarelo. Pegou implicância com a cor.

Quando chegou o colegial, também eram as mesmas agressões. Mas ela não sofria sozinha. No grupo dos nerds, todo mundo sofria junto. Isso, de uma certa forma, era bom, pois Juliana não se sentia tão sozinha. Ela tinha o ombro das amigas que passavam pela mesma situação. O grupo tinha apelido. “As caras amassadas”. Foram muitas as vezes que Juliana voltava para casa chorando no fundo ônibus. Ela acredita que a situação não foi pior porque tinha o apoio das amigas e da família, mas até hoje tem certo problema, certa insegurança quanto à aparência, relações amorosas e tudo mais. Acredita que talvez não seja capaz o suficiente de fazer outra pessoa feliz ao seu lado. As pessoas diziam que ninguém nunca iria amá-la. Ela era chata e feia demais para isso, sim, o cúmulo da mesquinhez, mas na época de hormônios em fúria e vários questionamentos sobre a vida, o universo e tudo o mais, o fato de conviver diariamente com a rejeição transformou o caso “mesquinho” em uma série de problemas psicológicos e dificuldades de relacionamento que perduram até hoje. Hoje, aos 27 anos, ela sabe que precisa voltar a fazer terapia. As humilhações do bullying escolar e doméstico ao qual passou deixaram sequelas, e os velhos fantasmas sempre voltam a rondar nas madrugadas.

Coloque meu nome como Juliana. Quando eu era criança, eu tinha uma boneca de pano chamada Juliana. Ela era linda, e eu queria ser como ela, linda, com o nariz pequeno e sempre com um sorriso no rosto. Juliana poderia ser jogada de um lado para o outro. Juliana, a boneca, não sentia dor. Eu, ser humano, sinto, apesar de tentar fingir que sou uma fortaleza inatingível. Quando eu estava com raiva, eu gritava com a boneca Juliana. Juliana não chorava quando eu gritava com ela, ela não se encolhia, ela não tremia, ela não baixava os olhos. Juliana tinha longos cabelos azuis, meus cabelos não eram azuis, e na época não eram longos. Eu via as garotas com penteados lindos, e por mais que eu colocasse presilhas, eu era sempre o Joãozinho.

‘Olha só o João… Tá tentando se passar por menininha. Nós sabemos que você tem um pinto entre as pernas… ’

Foram dias intermináveis de tortura até que eu tivesse madeixas que me caracterizassem como mulher, já que eu nunca tive muito seio. Quando fui para o colegial, achei que seria aceita, estava com os cabelos longos e cacheados, mas não, eu era apenas uma garota estranha, aquela que não seria amada por ninguém. Eu era apenas uma sombra, mesmo em dias nublados. Ainda hoje eu penso, por qual motivo as pedras azuis não me mataram. Talvez eu não estivesse aqui hoje, contando histórias. Sou forte simplesmente porque sobrevivi. E eu acredito muito nisso.”

A pergunta que não cala é o quão as escolas e pais estão preparados para lidar com esta situação? Quantas pessoas estão sofrendo caladas? São crianças, jovens, adultos que sofrem em silêncio. Quando vamos deixar de ser perversos contra os nossos semelhantes? Até quando o suicídio será a última opção para muitas das vítimas de bullying? Quando vamos parar de tratar o assunto como uma brincadeira de mau gosto, deixar a falácia “é normal nessa idade” como uma resposta para tudo? Bullying não é frescura, não é vitimização. Bullying é um assunto sério, e suas consequências são assustadoras.

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