Bullying - Um grito...Um nó na garganta

17/07/2015 09:07

O bullying não é um caso de “vitimismo”, conforme já ouvi muitas pessoas dizendo. Sim, existem pessoas que acreditam que as vítimas de bullying se aproveitam da situação, “preferem sempre tornar-se vítimas ao invés de superar”. Tem um ditado que diz que as pessoas não sabem definir uma situação sem antes ter passado por elas. Isso explica, talvez, esta linha de “raciocínio”. Existem aqueles ainda, que definem o bullying como um “termo frescura”, algo que inventaram apenas para “causar”. Comentários dignos de páginas como G1 e Terra, conhecido por comentários totalmente desprovidos de lógica e/ou humanidade.

A partir de hoje vocês vão conhecer a história de 4 vítimas do bullying: Maurício, Luana, Beatriz e Juliana, todos na faixa dos 20 aos 28 anos. São nomes fictícios, mas as pessoas que são donas das histórias são reais.  São pessoas trazendo as lembranças de um passado e um presente de sofrimento. Sim, presente, porque as vítimas de bullying carregam as dores da humilhação para sempre. Mesmo obtendo ajuda para superar, não se pode dizer que é uma tarefa fácil. Nunca se esquece, e aquele que diz que esqueceu está apenas mentindo pra si mesmo. Quero que ao final desta leitura, aqueles que acreditam que o bullying é sempre culpa da vítima, por não se adequar aos padrões aceitáveis de “normalidade”, passem a colocar a mão na consciência. Jeremy era um rei perverso? Não, os perversos fomos nós, que apontamos os dedos em riste e machucamos com palavras, gestos e ações. Este texto é dedicado para todas as vítimas de bullying, para as que se mantém caladas, para aquelas que falaram pela última vez…

 

Maurício – “Todo dia era um coro: Viado, bicha, gordo, boiola”

Maurício, desde criança, percebia que o seu mundo era diferente. A mãe é atriz; ele cresceu ouvindo as histórias do mundo mágico que é o teatro. No teatro, ele poderia ser aquilo que ele quisesse. Maurício acreditava que o mundo era assim, mas ele me disse: “Eu nunca pude ser o que eu queria”

Ele estudou em uma escola tradicional da cidade vizinha de onde morava. Era uma escola religiosa, ao qual todos os dias ele dizia à mãe que não queria ir. Não gostavam dele porque ele era de outra cidade. Jogavam areia nos sapatos dele durante o recreio. Ele nunca se esqueceu do dia em que numa festa de carnaval ele foi fantasiado de Batman. Ele tinha seis anos. Queria ser um herói, defender os indefesos. Só que o Batman foi enforcado com a sua própria capa por um menino malvado, metido a valentão da sua escola. Por um momento eu consegui visualizar a imagem triste de um menino andando com a cabeça baixa, chorando, com a máscara do Batman nas mãos.

O tempo passou, Maurício continuou sendo o mesmo menino indefeso. Não aprendeu a se defender, queria ele ter muitos amigos, mas ele diz que não é um garoto legal. Queria ter materiais escolares melhores, daqueles descolados, que todo mundo sente inveja e quer emprestado...

Eu sou gordo, feio, e odeio futebol. Nunca ninguém deixou de me dizer isso. Todo dia. Eu mudei de escola, para uma menor. Eu não tinha amigos meninos, só meninas, e isso é errado, certo? Eu tinha que ser macho, certo? Eu tinha que gostar de futebol. Eu odeio futebol e não dá pra confiar em um menino que não gosta de futebol.”

Com 10 anos, as crianças começam a se perguntar e serem questionadas sobre o que elas querem ser quando adultas, o que elas almejam para a vida delas. Começam a ser enraizadas as primeiras cobranças, e para quem é vítima do bullying, as escolhas, os sonhos, parecem ser algo inatingível,

Com essa idade a gente acha que sabe muita coisa, e é claro que não sabe. Mas uma criança de 10 anos não pode saber sobre sua sexualidade, ela tem que brincar e estudar. Mas eu tinha trejeitos, um jeito, eu era diferente demais. Uma criança nessa idade tem paixonites bobas, mas ela não é hétero e nem gay. Ela é apenas uma criança. Mas eu era diferente demais para ser apenas uma criança, então eu tinha um selo, um rótulo apontado na minha testa. Uma pequena aberração, onde todos podem cuspir e falar o que quiser, você é errado. 

Você é errado e sujo.

Eu não sabia o que eu queria ser. Eu nunca nem escolhi ser o que sou hoje. Mas ninguém nunca se importou em me julgar, nem os alunos, nem professores. Você é diferente, se acostume a ser tratado assim. Sua vida vai ser miserável.

Mas a maioria era criança e as palavras eram mais gentis.”

Quando entrou na adolescência, Maurício criou uma espécie de proteção. Disse que sua pele ficou um pouco mais rígida, mas não a ponto de construir uma armadura resistente, em que nada o atingisse. Este é o desejo de todas as pessoas que passam por isso, querem criar uma armadura, mas o que acaba acontecendo é apenas uma forma de esconder-se dentro de uma redoma de vidro, um vidro fino, e quando o vidro quebra, lá está você, vulnerável, desarmado, encolhido no canto, uma coisa frágil. Demora-se anos para a armadura se formar, mas ainda assim, alguns golpes atravessam-na. Maurício tinha de uma certa forma, se conformado de que era diferente. Continuou não gostando de futebol, mesmo estando em uma sala de fanáticos. Muitas pessoas acabam abraçando um gosto não verdadeiro para tornar as situações mais “fáceis” de lidar, mas não foi o caso de Maurício, ele foi ele mesmo, sem tentar disfarçar tudo com um sorriso amarelo ou comentários clichês. Continuou sendo o garoto que sempre foi, com os livros embaixo do braço, gostando de bandas que não eram da “moda” Um dia, ele se apaixonou por uma garota, que nas palavras dele, era a mais temperamental da sala. Tornaram-se amigos inseparáveis, feito unha e carne. Mas as palavras pararam de ser gentis, “selos, armas, rótulos, piadas”, uma série de apunhaladas nas costas,

“Viado, bicha, gordo, boiola… Todo dia. Viado. Todo dia era um coro, bicha! Um coro do momento em que eu entrava na escola, até a saída.”

Continuou amigo dela, nunca se declarou pra ela, e após tantas agressões, ele resolveu revidar. Humilhou, diminuiu, pagou na mesma moeda, devolvendo o ódio que foi jogado contra ele. 

“Eu me tornei uma pessoa maldosa por muito tempo, e trouxe essas atitudes pra dentro da minha casa, com meus familiares.”

Ele foi tão humilhado, pressionado, que passou a ser o agressor. Não pode ser culpado por isso. Ou pode?

Na colação de grau ele ficou com medo. Medo de ouvir tudo aquilo que ouviu durante três anos. Mas ele ouviu, algumas piadinhas sussurradas, de maneira covarde e cínica. E não terminou. Talvez nunca termine… Ouviu piadinhas na faculdade, no primeiro emprego,

Eu ainda escuto. Eu ainda não sei revidar”.

Questionando sobre dar a volta por cima e esquecer, ele disse que o processo é como uma “cicatriz profunda”. Está ali, o tempo todo, como se estivesse contando uma piada. Uma piada de gosto duvidoso, maldosa. Ele tenta, até hoje, aos 22 anos, levar uma vida normal,

“Ainda sinto medo de encontrar ex-alunos nas ruas, eu ainda me sinto marginalizado. Você passa sua vida inteira com todas as pedras apontadas pra você, é ensinado a se sentir errado, uma aberração, um problema. Hoje eu tento, faço um esforço mental diário de me amar do jeito que eu sou. Me esforço em pensar que Deus me criou do jeito que eu sou, e que fanáticos religiosos não tem o direito de me condenar.

As vezes de difícil me aceitar, me amar. Me sinto ridiculamente sozinho, mas ainda tenho forças pra lutar.”

Maurício é forte, humano. Talvez muito mais humano do que muitos de nós julgamos que nós somos. Mesmo tendo sido enforcado com a capa do Batman quando tinha 6 anos, Maurício disse:

“O Batman ainda é o meu herói preferido.”

Maurício é um herói, um herói em um mundo de perversos.

 

Luana – “Um corpo que cai”

Luana tem 21 anos. Desde criança carregou o título de nerd e quatro olhos. Tem 4,5 graus de hipermetropia. Aos treze anos escutava frequentemente: “Tá se achando”, por causa da postura impecável que ganhou por causa dos anos e anos praticando dança, uma de suas paixões. O que era para ser visto como algo bonito, era interpretado como uma forma de ser superior aos outros. Os agressores não perdem a oportunidade de ofender. Procuram inclusive, tornar algo digno como um meio de ferir. Além do aparelho fixo, usava o temido “freio de burro”. Não tinha como escapar das ofensas. Boca de ralador e jumenta… Esses eram os apelidos que Luana carregou na sua adolescência. Um dia um garoto disse que ela era muito feia. “Parece um jumento, só nascendo de novo”. Essas são palavras que a perseguem até hoje.

“E minha eterna luta com o espelho simplesmente fez com que eu leve essa frase, essa escrotidão, por ainda um bom tempo. Hoje, nada, exatamente nada do que eu faça, um simples corte de cabelo, uma roupa diferente ou até uma tatuagem, nada disso me farão [sic] crer como realmente sou, feia ou bonita, muitas vezes me sinto bem com minha aparência, e na maioria delas sinto que estou nascendo de novo.  Realmente, posso não parecer um jumento, mas uma mulher, digna de se olhar no espelho e que questiona a Deus por que a fez assim? Eu não sei.”

A maioria das meninas, púberes, com corpos exuberantes, seios, pernas grossas; Luana diz que ser magra não é uma vantagem. Queria ter um corpo exuberante, talvez assim ela se livrasse dos termos “magrela”, “vara de passar”. Não foi apenas a aparência que fez com que Luana sofresse. Foi alvo de perseguição e difamação por conta da religião. Aos 15 anos foi estudar em um colégio católico tradicional da cidade em que mora. Colégio modelo, uma elite, somente os bons e os melhores. No meio de tantas pregações morais, ela foi ferida em um ambiente ao qual, em tese, por pregar o “Amar tal como Jesus amou”, deveria protegê-la e nem ao menos isso aconteceu. Por ser diferente das outras meninas e ser espírita, e não católica, foi alvo de desprezo de alunos e professores,

Um dia, a ‘brincadeira’ fugiu dos limites. Estava sentada na minha carteira, quando resolveram me atacar. Balançaram-na tanto, que caí no chão, ainda presa a ela, bati com a nuca e desmaiei. Estávamos em aula, os professores nada fizeram, além de claro, ignorar o fato. Acordei. Da forma como caí, havia passado alguns horários de aula e o recreio. Estávamos em outra aula, levantei e percebi o olhar indiferente que a professora lançava sobre mim, era um olhar de reprovação, ‘deixa de ser burra e levanta logo daí, vê se aprende com seus erros, olhe para seus colegas, eles sim são dignos de estudarem aqui, levanta logo e vai pra coordenação!’, eu poderia jurar que estava ouvindo os pensamentos dela, mas infelizmente eram as palavras que realmente saíam de sua boca enquanto todos me olhavam, rindo, debochando, ridicularizando.  “

Luana foi para a sala de coordenação, e a situação ao qual ela passou foi tratada como o bullying é tratado na maioria das vezes: “Acontece, uma brincadeirinha de mau gosto, coisa de criança, depois passa”. Junta-se isso e uns afagos na cabeça, como se isso tivesse o poder de cura. Os agressores nem ao menos foram chamados para uma conversa. Nem os agressores, muito menos a professora desumana que ministrou aula com uma garota jogada no chão, desacordada. Não importa, afinal, ela era espírita, e não católica. Usava colares estranhos em volta do pescoço, tinha cara de drogada, com aqueles cabelos ondulados tampando o rosto e o corpo magro. Essas eram as definições que professores e alunos tinham da garota que “parecia ir contra as estatísticas do colégio”.

Nunca consegui esquecer, sonho que estou caindo de cadeiras, são lágrimas e dor, medo das pessoas, coisas que a medicina ainda não me ajudou a solucionar. Em casa a coisa não era diferente, meus pais sempre tão distantes, e quando próximos se referiam a mim com críticas, reclamações e xingos.”

Luana passava horas intermináveis estudando matemática, química e física. Essas matérias sempre foram um pesadelo para ela. Ficou de recuperação no final do primeiro ano do ensino médio. Os pais começaram a estranhar a imensa dificuldade que a filha tinha nos cálculos mais simples. Depois de inúmeros exames, descobriu que tem discalculia.

“Eles não sabiam, mas eu sempre passava horas dos meus dias, momentos intermináveis estudando matérias as quais me deixam em pânico até hoje (matemática, física e química) somente para alcançar a média mínima pois nunca consegui entender nada, hoje, uma regra de 3 sou capaz de fazer somente com calculadora, algumas contas simples de soma ou subtração de cabeça são impossíveis”

Depois de muito sofrimento, e sequelas que a atormentam até hoje, principalmente em questões de aparência, Luana mudou de escola. Disse que lá finalmente conseguiu ter o respeito que merecia. Fez amigos, conheceu professores fantásticos que a incentivavam a seguir em frente. Ela sabe que ainda tem muitas feridas, e que as mesmas demoram muito tempo para cicatrizar, e mesmo depois de cicatrizadas, elas estão ali, visíveis. Esquecer completamente é impossível, pensa ela, mas ela acredita na superação. E seguiu em frente. Ainda sonha com um corpo que cai, mas no final, ela sempre tenta se reerguer.

Vejo que ainda tenho muito do que aprender, é um clichê, mas é a realidade.  Descobri que no mundo existem várias coisas que te derrubarão, lhe deixarão com medo, em pânico, entre outros sentimentos e emoções. Mas, existem outras milhares de coisas que te farão perceber que é uma dádiva pertencer a este mundo, mesmo sem realmente pertencer a ele. Ser você mesmo é uma luta diária que lhe garante sucesso.”

Por hoje é só...continuamos com os outros 2 semana que vem...te espero na sexta :)

 

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